O Não
A Europa enfiou os pés pelas mãos com esta história da constituição europeia. É difícil imaginar um processo mais disparatado do que este: 1º) foi forjada por um punhado de “sábios”, longe do jogo/jugo incómodo da democracia; 2º) a sua ratificação coincide com o processo de alargamento mais delicado de sempre e que mais receios desperta na velha Europa balofa; 3º) também não ajuda nada fazer referendos desta natureza em contextos de recessão económica, dado que o voto popular acabará sempre por ser um voto de protesto; 4º) o itinerário da ratificação, que compreende modalidades distintas – ratificação parlamentar e ratificação por referendo – e tempos distintos, é o retracto de uma Europa desencontrada consigo própria, perdida no labirinto dos nacionalismos e da máquina burocrática; 5º) o documento parece querer agradar a todos – dos federalistas aos eurocépticos – acabando por não agradar a ninguém. A constituição nestas circunstâncias foi uma presa fácil para o radicalismo folclórico da extrema-direita e dos revivalistas da esquerda fácil. A comunicação social e a insatisfação social fez o resto. A constituição europeia morreu. Estranha Europa esta que sabe onde é o seu centro, mas não se consegue decidir quanto aos seus limites. Creio que apesar de tudo é inevitável que chegue o dia em que a necessidade de uma constituição ou de um documento comum – para além dos tratados – se imponha. Não acredito na possibilidade de uma supernação, mas também não acredito numa Europa destas nações. Vamos ter de percorrer um caminho que ninguém ainda fez. Até lá, há que aperfeiçoar os mecanismos de participação democrática porque a UE funciona sustentada numa legitimidade democrática diferida, de segundo grau, na qual o cidadão intervém muito pouco e apenas indirectamente. Deveríamos todos eleger o comissariado, a adesão de novos membros devia ser referendada, as regiões transnacionais deviam ser cada vez mais o modelo de referência, parcerias e fusões de serviços e responsabilidades bilaterais e trilaterais deviam ser incentivadas com programas específicos. A verdade é que as nações europeias tal como hoje existem são inviáveis a longo prazo. Aliás, Portugal é um país que já é inviável. Voltando ao referendo: com a máxima naturalidade aceito o Não da França e da Holanda, tal como vou aceitar outros Nãos. Mas, concordando com o Não, não militarei por ele, porque à sua sombra vive muito animal político impróprio para consumo. Um pequeno grão de chauvinismo vê-se a olho nu nas hostes negacionistas. Também não militarei do lado do Sim, dado que me parece espúrio. A verdade é que o documento é inócuo e é justamente por esse motivo que o argumentário de um lado e de outro parece se referir a documentos distintos: a actual proposta de constituição é apenas um contentor onde cabe tudo, não são princípios, mas lugares comuns, uma parede branca e opaca sobre a qual os franceses e holandeses projectaram os seus medos, muitos, e as suas esperanças, poucos. Quando chegar o momento de se fazer uma constituição a sério, espero que se comece por eleger uma assembleia constituinte e que os seus princípios e fins sejam amplamente discutidos; espero que então que haja um referendo universal e em simultâneo em todos os países. Mas até lá ainda há muito que fazer e este fazer que falta fazer é ainda a própria democracia. PS: perante o que afirmei, é minha convicção de que o governo português nos deve poupar à farsa do referendo. Esta constituição morreu. |
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