Portugal, Portugal...
Ainda estou a padecer da noite de S. João. O meu cérebro parece se ter transformado em pura gelatina de mão de vaca. O meu fígado está mais encolhido do que uma ervilha. Os meus dedos tremem descontroladamente, como se tivessem vida própria. Os meus olhos estão mais baços do que as finanças dos partidos. Albarran foi preso. A minha mulher ainda é a minha mulher. Mas creio que sobreviverei. Amanhã terão mais notícias minhas. Espero. Entretanto, por não ter força suficiente para activar uma sinapse sequer, deixo-vos com um textozinho publicado no O Jornal do Povo (um periódico cartista do Porto oitocentista) no magnifíco dia 17 de Maio de 1853. Parece-me que os nossos neo-liberais que enxameiam a blogosfera poderão simpatizar com este corajoso cronista que assina simplemente “Y”. «Para se poder avaliar entre nós, as tendencias para os estudos sociais, para os melhoramentos publicos, para o desinvolvimento economico, basta avaliar uma expressão de que usa por ahi quasi toda a gente. Se o governo não faz nada! E com isto a priguiça pretende justificar-se, a indolencia talvez requeira um altar, e o desleixo a apotheose. O governo póde ser menos util aos interesses nacionaes, sendo pouco escrupuloso na gerencia financeira, pode prejudicar o commercio pondo-lhe pêas e embaraços, pode arruinar muitas especulações lucrativas pelo arbitrio das suas concessões; porém quando se goza de uma completa liberdade de acção, e associação, quando por todos são conhecidas as regras que se devem seguir, que não se teme o poder absoluto, nem violencias de qualquer natureza, exigir que o governo representante mais vezes que as suas tendencias, é não só uma utopia visivel, mas também uma apostasia de principios! Se vós estaes continuamente censurando o governo pelo pretendido abuso de poder, por transpor os limites das suas attribuições, por invadir a esphera onde imperam outros potentados, como pedis providencias extraordinarias para qualquer assumpto que devia estar ao alcance da vossa intelligencia? Fallamos com o Portuguez[1]. [...] Pois que, estadistas tam consumados, criticos tam severos, pedagogos tam eloquentes, pedem providencias ao governo sobre o augmento de salario dos operarios agricolas, e sobre a emigração dos trabalhadores para o caminho de ferro? Provaes então que as vossas aspirações são realmentebem pouca cousa, ides pedir conselho ao ministro para depois censurardes a medida? Ou pretendeis que os vossos adversarios tenham a sinceridade de acceitar a vossa simpleza? Pedis providencias que obstem ao augmento do preço do trabalho? Primeira tolice, ou primeiro absurdo. Não sabeis que o governo não modifica as leis da offerta e da procura? Como se hade decretar trabalho onde não ha nada a fazer, ou prohibir que se trabalhe onde ha muito que fazer? O governo deve ser o director, e o gerente dos industriaes agricultores ou manifactores? Pode governo rasoavelmente invadir a mais sancta, e a mais sagrada das propriedades, a propriedade do trabalho? Pedis indemnisacções para os usurarios, e prepotencias para os obreiros, eis aqui o que valem as vossas declamações. [...] Pedis que o governo mande buscar galegos, que o trabalho é bom, e barato!! Se estivesseis sentados nas cathedrais ministeriaes, dois vapores, patrocinariam os interesses da propriedade! A lei da offerta, seria uma quimera, e o interesse dos operarios um padrão que deveria ser aferido pela vossa craveira! Talvez ignoraes que ha uma emigração constante de portuguezes para trabalhos agricolas da provincia da Andaluzia. – Se o soubesseis pedirieis de carto a prohibição da emigração, appresentando-nos uma nova reforma do edicto francez de 8 de Novembro de 1791? Não é assim que se tem em conta os interesses da propriedade. Não é com a tyrannia, nem com as providencias stultas, e requisições de pouco bom senso, que se anullam as leis economicas, ou se evitam as circuntancias especiaes em que se encontra collocado qualquer paiz. [...] O trabalho é como o dinheiro, são capitaes que affluem, onde ha interesse, e onde podem ser empregados lucrativamente. É este o principio que determina as emigrações, e não ha outros motivos em que ella se justifique.» Não sendo um texto brilhante, é, contudo, ilustrativo de um país congelado. Mudam-se as circunstâncias, mudam-se os protagonistas, mudam-se os tempos, mas é sempre a mesma velha cantiga: um país em que o estado cresce como um cancro. Na verdade, nenhum português é, por definição, liberal. Podem brincar aos liberais, mas serão sempre eternos afilhados do estado. Em 150 anos o estado cresceu mais que o próprio país. O pior é que nos cresceu por dentro, pela consciência adentro. [1] Outro periódico... |
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