Marina da Barra
1. A revista Engenharia e Vida do passado mês de Maio faz capa do projecto Marina da Barra da Ria de Aveiro. O artigo é assinado pelo Eng. Eduardo Gomes da Irmãos Cavaco S.A. e tem por título: «Marina da Barra: Uma Ilha “Conquistada” ao Canal da [sic] Mira». Este título por si só é já meio programa, remetendo-nos para um linguajar belicista que se enquadrará no paradigma oitocentista do Positivismo ingénuo, o qual entendia o progresso como uma luta do homem contra a natureza. Não me vou dar ao trabalho de demonstrar a falência actual e consensual de um modelo do século XIX, mas é com algum desalento que se constata que a competência técnica nem sempre é acompanhada por uma reflexão que lhe faça justiça. Mas vamos ao artigo: 2. Como já é fastidiosamente habitual nestas situações, o autor começa por confrontar o leitor com o que se faz lá fora, no estrangeiro, tentando demonstrar o nosso eterno atraso. É natural que nesse ponto tenha razão, mas tal não o autoriza a afirmar que existe um «deserto de ideias e iniciativas», porque na verdade elas existem, inclusive a proposta de construção de pequenos portos de abrigo e de apoio ao longo dos vários braços da Ria de Aveiro, sem qualquer componente imobiliária e restringindo-se apenas ao essencial em respeito à fragilidade do ecossistema. 3. Não dando, portanto, como dado adquirido que este projecto de Marina é a única solução possível, passemos à análise de alguns pontos da argumentação de Eduardo Gomes, ficando desde já estabelecido que não abordarei qualquer questão de ordem técnica para qual nem possuo a devida formação para a poder discutir e que nem é sequer o que me interessa aqui discutir. Aliás, do ponto de vista do mero exercício de engenharia o projecto é no mínimo sedutor. Só que estamos aqui a falar de algo muito concreto e demasiado importante para se reduzir a uma mera questão técnica. À margem da exposição técnica fez-se recurso a processos argumentativos que merecem ser discutidos: a) Evoca o Plano Director do Porto de Aveiro, elaborado na década de 70 pelo eng. Vasco Costa e no qual se previa um serviço de apoio à náutica de recreio; Todo o país ganhou com o desenvolvimento do Porto de Aveiro nas suas diversas valências (comercial, industrial, químico, pesca longínqua e costeira) e, de facto, o Plano Director original teve aqui um papel essencial. Mas a factura ambiental estamos agora a pagá-la. O processo de betonização das margens da Ria, a poluição química das águas e dos lodos e o espectro do desastre ambiental que pesa sobre todos os residentes da área de influência do Porto de Aveiro são consequências desse mesmo Plano. Foram opções que gostaríamos de não ter sido obrigados a fazer, mas entre o desenvolvimento económico e a preservação ambiental compreende-se que, naquele momento, a escolha tenha recaído sobre a primeira opção. Mas já não estamos nos idos anos 70 e, por isso mesmo, os dados não são exactamente os mesmos. Só para nomear dois dos mais importantes: ao contrário de então, as margens da Ria possuem uma forte densidade populacional que convive com a estrutura portuária e hoje em dia as questões da ecologia e da preservação da qualidade de vida são questões que marcam a agenda política e, em alguns países, a agenda empresarial. A evolução das circunstâncias observada nos últimos anos não nos permite ancorar um projecto com a dimensão do da Marina da Barra num quadro de há duas décadas atrás, o qual pretendia responder a outro tipo de problemas e de necessidades. E o facto de o tal Plano Director prever a existência estruturas de apoio à náutica de recreio nada legitima, porque concerteza que nunca previu a dimensão agora pretendida e muito menos ainda um investimento imobiliário acoplado. b) Evoca o Decreto-Lei n.º 507/99 de 23 de Novembro, que autoriza a Administração do Porto de Aveiro (APA) a concessionar por um período de 60 anos [!] a construção e exploração de uma marina (apoio à navegação, abrigo portuário, comércio e indústrias complementares) com 850 [!] lugares para embarcações até 35 metros; Apesar de considerar seis décadas um período demasiado longo para qualquer concessão e de considerar que 850 lugares um número manifestamente exagerado, não é por aí que quero pegar neste ponto. Acontece que o Decreto-Lei em causa colide com outra legislação, a saber: com o Decreto-Lei n.º 384-B/99 de 23 de Setembro que criou a ZPE (Zona de Protecção Especial) da Ria de Aveiro, pelo qual se procura acautelar a preservação de várias espécies de aves, o que implica um cuidado especial com o sapal e sistema de lodos. O Decreto-Lei n.º 507/99 de 23 de Novembro, por sua vez, vem a situar a área de concessão mesmo em cheio na ZPE entretanto definida por legislação anterior! Como se não fosse suficiente, nunca é demais recordar que o próprio Decreto-Lei que enquadra o projecto é auto-contraditório porque se o preâmbulo não acolhe a possibilidade de edificação no próprio leito da Ria (dados os constrangimentos inerentes à integração desta na Rede Natura 2000), já o articulado parece fazer tabula rasa do anteriormente dito, admitindo a edificação das habitações, hotéis e demais instalações no mesmíssimo local anteriormente salvaguardado! c) Queixa-se da «burocracia de um país que teima em manter-se imóvel em questões estruturantes e potenciadoras das actividades económicas»; Desta vez não é uma questão meramente burocrática, até porque tanto quanto se saiba não há nenhum parecer encravado nalgum ministério ou autarquia. O que se passa é que houve uma decisão política, confortada por pareceres técnicos superiores, que contrariou as expectativas irrealistas da Sociedade de Desenvolvimento e Exploração da Marina da Barra de Aveiro (na qual o BPN tem uma posição importante). Perante isto só há uma coisa a fazer: repensar o projecto em termos ambientalmente aceitáveis, deixando cair os devaneios imobiliários. Seja lá como for, não me parece que a APA fique de mãos a abanar, até porque, segundo ouvi dizer, tem um outro projecto imobiliário e turístico para o Forte da Barra do outro lado da Ria. d) Lamenta que «a mesma Administração que num momento promove este empreendimento, noutro momento hesita e “desmobiliza-se” num processo que, se não tiver outro fim, seguramente descredibiliza o País e a sua capacidade de mobilizar investimento»; Não deixa de ser curioso este lamento, porque o comportamento errático da Administração central já se tinha manifestado antes, aquando da promulgação dos dois Decretos-Lei acima referidos e aí o Sr. Eng. Eduardo Gomes não viu qualquer inconveniente. A Administração também num momento promoveu a protecção da Zona Húmida da Ria de Aveiro e, noutro momento hesitou e “desmobilizou-se” num processo, no mínimo incoerente e – acredite – lesivo para a imagem do País. Que crédito podemos dar nós a um País que em Setembro se propõe a proteger uma área ambientalmente sensível e em Novembro do mesmo ano se propõe a permitir a edificação de um projecto imobiliário megalómano (sim, porque é apenas disso que se trata afinal de contas) nessa mesma área? Como se vê, até estamos de acordo no que diz respeito à essência do problema, só que não faço despoletar a minha indignação ao retardador como o Sr. Engenheiro dos Irmãos Cavaco, S.A. e) Não termina sem alertar de que este projecto é «ansiosamente aguardado pelas populações da região da Ria de Aveiro». Não consta que cagaréus, gafanhões, vareiros e outras populações que convivem com a Ria tenham alguma vez pedido seja lá a quem for uma Marina. Não senhor, não consta no rol das aspirações das populações ribeirinhas tal exigência. Agora se me falasse, por exemplo, da despoluição da Ria ou da devolução da Ria e das suas margens a quem de direito (a todos nós), aí sim! Agora uma Marina... Demais a mais esta questão é muito mais melindrosa do que se possa à partida julgar. Ribau Esteves, Presidente da Câmara de Ílhavo e entusiasta do projecto, chama a si o direito de decidir sobre o futuro do seu próprio Concelho, não hesitando afirmar-se como porta-voz da população local. Ora, se alguma vez vierem a ser ultrapassados os constrangimentos legais e o veto político da Administração central, sugiro ao autarca que dê uma lição de democracia e dê oportunidade à população local de se pronunciar por referendo relativamente a esta obra que irá condicionar em muito o futuro de cada um. O autarca, desta vez como porta-voz do promotor, terá ainda afirmado que «O terminal químico levou-nos não sei quantos hectares de sapal e não houve nota pública de contestação ao projecto.» (Ahhh! Eram bons velhos tempos, não eram?). Em vez de desvalorizar o impacto ambiental do projecto, talvez fosse mais útil, pedagógico e inteligente obrigar o promotor a assumir uma maior responsabilidade cívica e ambiental, até porque foi para isso que o elegeram, ou não?! Por outro lado, uma coisa é construir ao longo das margens, outra construir no próprio leito da Ria, a qual não pertence ao Concelho de Ílhavo, mas, em primeiro lugar, a todos os concelhos banhados pela Ria e, em segundo lugar, ao País. Por este motivo são justas e fundamentadas as críticas do Presidente da Câmara de Aveiro à pretensão da construção da Marina da Barra. Agora que se aproximam as eleições autárquicas, talvez fosse o momento de cada autarca da ria tomar uma posição sobre o assunto. Não se pode permitir que o assunto fique a hibernar até que apareça uma conjectura política mais favorável (na prática: que o ministro certo esteja no ministério certo e o autarca certo na autarquia certa). Será que a Marina rende votos? Faça-se o teste. 5. Para quem não está bem por dentro do assunto deixo aqui a Marina da Barra em números: - Área total da Concessão: 586 686 m2* - Área molhada: 268 663 m2* - Área seca: 318 023 m2* - Área verde total: 131 151 m2* - Espaços verdes de uso privativo: 85 206 m2* - Espaços verdes de uso colectivo: 45 945 m2* - Áreas privadas de utilização pública: 13 220 m2* - Área total de vias: 36 620 m2* - Áreas pontes: 2072 m2* - Área total de passeios: 57 761 m2* - Área total de estacionamento em superfície: 4442 m2* - Volume do aterro para construir a ilha artificial: 700 000 m3* - Hotéis: 2** - Moradias: 130** - Apartamentos: 420 - Lugares para embarcações: 858** - Lugares de estacionamento automóvel: 1756** - Oferta existente para embarcações de recreio: 1773 (+1171 a seco)** - Número de escalas/ano previstas: 50** (fontes: *Artigo da revista Engenharia e Vida; **Outras fontes) 6. Problemas que poderão resultar da concretização da Marina da Barra: - Ocupação de Zona Protegida; - Destruição do ecossistema lodoso e do sapal; - Perda do habitat natural e consequente pressão sobre a sobrevivência de espécies piscícolas e de aves (incluindo aves migratórias); - Alteração da dinâmica das correntes e dos bancos de areia, podendo ter um impacte imprevisível da segurança da Ponte da Barra; - Abertura de um precedente perigoso de desrespeito pelas ZPEs; - Aumento da pressão imobiliária sobre a Ria e sobre a própria Praia da Barra; - Impacte irreversível sobre as actividades tradicionais (salinicultura, pesca, apanha de bivalves,...) - Congestionamento das vias de tráfego (já actualmente saturadas); - Excessiva pressão demográfica sobre o lugar da Barra 7. Nasci e cresci em Aveiro até me mudar para o Porto. Foi na Ria que aprendi a nadar, onde aprendi a pescar e, sobretudo, aprendi esta coisa estranha que é comoção perante a natureza. Para quem não é de cá, para quem nunca habitou as suas margens e desconhece o ritmo das marés e das aves migratórias, para quem nunca saboreou uns burriés ou umas amêijoas com uma cervejinha no Cais da Bruxa, para quem nunca mergulhou nas águas do esteiro do Jardim Oudinot, para quem não trata os barcos bacalhoeiros pelo seu nome próprio como se de uma pessoa se tratasse (o «Brites», o «St.ª Teresa», o «St.ª Mafalda»,...), para quem nunca sentiu com prazer a névoa que se levanta da Ria, para quem nunca atravessou em romaria a Ria para as bandas de S. Jacinto, para esses acredito que a Ria possa ser um braço do mar a ser conquistado. Para nós, não. Mesmo sabendo que não se é feliz duas vezes no mesmo sítio, gostaria de, pelo menos, dar a oportunidade aos que aí vêem de serem também eles felizes por aqui. (Fonte da Imagem: http://ortos.igeo.pt/ortofotos ) |
Publicado por David Afonso às 18:56
Comments on "Marina da Barra"
Desconheço por completo o problema; contudo o artigo só dignifica este blogue. Não percebi, contudo, qual é a posição oficial das autoridades competentes sobre este assunto...
Um abraço,
AA
Talvez não saibam, mas Ribau Esteves foi um dos poucos entusiastas de Santana Lopes, tendo chegado a pedir o afastamento do partido de todos os criticos do então primeiro-ministro
Caro António Amaral
A posição oficial das entidades competentes é desde do início do processo ambígua (como se vê pela contradição existente na própria legislação). Contudo, a administração central, pelos orgãos competentes já "chumbou" por duas vezes projectos para a Marina da Barra (nesta última vez, curiosamente, por Isaltino Morais). Na administração local a posição da autarquia é clara: impor o projecto a qualquer custo. O ponto actual da situação não conheço, mas creio que se está a atravessar por um período de incubação e quando as condições se mostrarem favoráveis os promotores do projecto tratarão de o ressuscitar. Talvez as próximas eleições autárquicas nos tragam novidades.
Obrigado. Mantenham-nos a par da questão!
A situação actual é precisamente a de incubação da responsabilidade do consórcio que ganhou a concessão, que, se quiser, poderá apresentar um novo projecto, elaborar o devido EIA e tentar novamente, mas que só com uma alteração muito significativa ao anterior projecto poderá passar em sede de Processo de AIA.
No entanto, o que o governo deveria fazer era, com base no resultado do anterior Processo de AIA, reconhecer que o que concessionou no Decreto-Lei n.º 507/99 de 23 de Novembro nunca poderá ser construído como tal, e então, por um novo decreto-lei, anular (ou alterar) os termos da concessão anteriormente atribuída de forma a não concessionar qualquer construção de imobiliário no domínio público hídrico e diminuir radicalmente a concessão de amarrações.
Mas o Eng. Ribau Esteves não desiste, e pela sua mão como Presidente da AMRIA, está neste momento e até 22 de Julho (é já dentro de dias o fim do prazo) em dicussão pública (é possível a qualquer um apresentar reclamações) o Plano de Ordenamento Multimunicipal da Ria de Aveiro (salvo erro o primeiro do género no país), no qual o anterior projecto é enquadrado, o que é muito mau já que aumentará o número de instrumentos legais que pretendem legalizar tal monstro de destruição e de NÃO interesse público.
O que é aceitável que se desenvolva são mais ancoradouros de pequena dimensão que, de facto, sirvam o interesse das populações no usufruto deste bem precisoso que é a Ria de Aveiro.
O que foi dito neste comentário é de grande gravidade! Ribau Esteves não pode condicionar desta forma o fututo das populações ribeirinhas! Quando os autarcas são o melhor amigo dos promotores imobiliários, contra tudo e contra todos, é a própria democracia que está em risco! Creio que é nossa obrigação fazer alguma coisa! Mas... o quê? Aceitam-se sugestões.
Denunciando este como outros casos. Octávio Lima (ondas2.blogs.sapo.pt)