Picote*
O jornal Público de ontem traz uma notícia sobre a qual estou para vos falar há muito tempo: o caso da Barragem do Picote, que é um caso exemplar de desperdício de dinheiros públicos e de desaproveitamento do potencial turístico de uma região, que ainda por cima, luta contra a desertificação demográfica e contra o subdesenvolvimento económico. Vamos começar pelo princípio. Nos anos 50 e a propósito do I.º Plano de Fomento (1953-1958), cujos fundos vieram do Plano Marshall e da OECE, Portugal tem a oportunidade de impulsionar a campanha de electrificação do país, aproveitando a ocasião para construir a «Central do Douro», a qual incluía as barragens do Picote, Miranda e Bemposta. Estamos prestes a iniciar uma das mais belas e empolgantes páginas, embora das mais discretas e esquecidas, da arquitectura moderna portuguesa e até (porque não?) europeia. Em 1953 a «Hidroeléctrica do Douro, SARL» convida três jovens arquitectos da Escola de Belas Artes do Porto para integrarem a equipa técnica que teria como função o desenvolvimento de um plano integral para estas barragens: João Archer Carvalho, Manuel Nunes de Almeida e Rogério Ramos. A convite destes, outos arquitectos e artistas plásticos colaboraram neste projecto: António Cândido, Hildeberto Seca, Fernando Paula, Fernando Leal, Costa Pereira, Freitas Leal, Mota de Sousa, Lúcio Miranda, Luiz Cunha, Pádua Ramos, Júlio Resende, Barata Feyo e outros. A primeira e mais interessante das intervenções é a da Barragem do Picote, cujo complexo é um verdadeiro hino ao modernismo. A equipa desenhou tudo, desde o crucifixo até ao projecto urbanístico: habitações e serviços vários para 5000 pessoas, estudo de espécies arbóreas compatíveis com o clima, estudo de tipologias construtivas apropriadas, estudo de materiais tradicionais e modernos, estudo dos percursos automóvel e pedonal, piscinas e parque desportivo, pousada, capela, escola, etc. De todo este trabalho, quatro elementos são de destacar: a capela (uma das mais perfeitas obras da arquitectura moderna portuguesa), o Centro de Comando, a Pousada e as casas dos engenheiros. Qualquer um destes elementos, por si só, justificaria a deslocação ao Picote. Entretanto, com a modernização e informatização das instalações, o exército de funcionários deixou de fazer sentido e, aos poucos, o complexo do Picote foi-se esvaziando e caindo no esquecimento até que nos anos 90 Michele Cannatá revela-nos o «moderno escondido». De certo modo, a redescoberta deste «moderno escondido» obrigou-nos a repensar a história da arquitectura moderna portuguesa, dado que aí encontramos uma intervenção sistemática e pormenorizada, com exemplares perfeitamente ilustrativos dos princípios do modernismo, fora dos grandes centros urbanos, perdida atrás dos montes. Fizeram-se exposições, catálogos, escreveram-se livros e artigos de imprensa (especializada e generalista), alunos de arquitectura e de história da arte e arquitectos fazem verdadeiras visitas de estudo ao local. Muitas das vezes chegam a entrar pelas janelas para poderem admirar por dentro os edifícios, a capela, quando se tem a sorte de encontrar algum resistente, repleto de orgulho por tudo aquilo, lá nos abre a porta e nos faz uma curta visita guiada. É incrível a atracção que este lugar exerce sobre estes novos peregrinos! Não falta quem venha de Lisboa de propósito para ver o «moderno escondido»! O conjunto – urbanização e natureza – é mesmo digno de admiração. A parte incompreensível desta história é que o Grupo EDP, proprietária de tudo aquilo, desinteressou-se do seu próprio património, deitando-o ao abandono. As casas estão vazias, a pousada fechada, a piscina vazia... Qualquer um vê que o lugar é dotado de um potencial imenso quer pela qualidade do ambiente e da arquitectura, quer pela notoriedade entretanto alcançada. Qualquer um menos a EDP, que não rentabiliza o Picote e nem permite que a autarquia o faça! Para já a Câmara de Miranda do Douro conseguiu activar um Centro de Acolhimento Juvenil no edifício recuperado da Cooperativa e tem planos para reaproveitar o Centro de Comando num projecto conjunto com a UTAD, mas a EDP não deixa ir mais longe. Ouviu-se falar do interesse de um investidor espanhol na pousada (apesar de tudo inviabilizado à partida por pretender construir aí um campo de golfe, enfim...), os moradores e outros interessados já tentaram adquirir algumas das habitações, mas... nada! A EDP continua a desperdiçar dinheiro desta maneira. Manuel Rodrigo, presidente da autarquia, bem se pode lamentar. Mas tem razão: «Se existe paraíso na terra, é aqui.» Para saber mais: CANNATÀ, Michele; FERNANDES, Fátima. Moderno Escondido. Arquitectura das Centrais Hidroeléctricas do Douro (1953-1964). Picote. Miranda. Bemposta. Porto: FAUP Publicações. 1997 *com Adriana Floret |
Publicado por David Afonso às 18:04
Comments on "Picote*"
Hoje a Pousada esta reabilitada a pedido da EDP, e foi um trabalho realizado Por Michele Cannatà e Fátima Fernandes. Foi, a meu ver, muito bem conseguida esa reabilitação, que tive a oportunidade de visitar com os autores.
Resta dizer que foi não só graças a Michele Cannatà mas também Fátima Fernandes que o livro se realizou. E recomendo.