O blogue do não
No blogue do não defende-se o não à despenalização da IVG nas primeiras 10 semanas de gravidez. É preciso arrazoar-se, pelo que aqui ficam os meus parabéns à iniciativa. Alguns comentários a uma primeira e breve leitura. Segundo Jorge Ferreira, Papiniano dizia que, antes de nascer, não pode dizer-se, com correcção, que o feto é um homem, e Ulpiano dizia que, antes de nascer, o feto era uma porção ou víscera da mulher. Se o sim ganhar, recuaremos a Roma. Ao pior de Roma. A discussão pouco fugirá desta questão: saber se o feto até às 10 semanas é ou não vida humana. O bem jurídico protegido pela norma que incrimina o aborto no Código Penal - mesmo num ordenamento jurídico proibicionista como o português - não é a vida humana. Tal como o é, por exemplo, no crime de homicídio. O legislador não arriscou a tanto. É, sim, a vida intra-uterina. Não direi, como os ilustres juristas romanos citados, que o feto é uma víscera da mulher. Mas, seguramente, o feto até às 10 semanas vida humana também ainda não é. Reduzindo este argumento ao absurdo, um mero espermatozóide deveria ser preservado. Não, essa ideia de Papiniano e Ulpiano não era o pior de Roma. O pior de Roma era a miséria humana, a pobreza, a guerra, a fome, a injustiça, a escravidão, a tirania, a pena de morte. Fala-se muito na vida humana enquanto valor absoluto. Inquestionável. Aqui, aqui e aqui, por exemplo. Sem dúvida, a vida humana está muito próxima do valor absoluto. Mais do que qualquer outro valor. Porém, não há valores absolutos. O instituto da legítima defesa é bom exemplo disso. Sempre gostaria de saber o que pensam os senhores absolutistas: deve ou não abortar uma mulher que descobre que está grávida do seu violador, que por acaso é também seu irmão?; deve ou não deve abortar uma mulher que sabe que o seu filho terá uma deficiência profunda irreversível? Muito provavelmente dirão que deve, que são excepções que se justificam. Mas um filho que nasce deficiente não é menos vida humana do que um filho que não nasce deficiente. Um filho que nasce de uma violação perpretada pelo próprio irmão da vítima não é menos vida humana do que um filho que nasce convencionalmente. A vida humana, afinal, já não é assim tão absoluta. Mas a vida humana é um valor absoluto e há que penalizar a IVG do feto com menos de 10 semanas. Aqui já dá jeito dizê-lo. Não incomoda moralmente. Mantém-nos longe da possibilidade de uma mãe, neste mundo, vir a ter de olhar para a cara do filho vendo o violador; mantém-nos perto de pessoas mais saudáveis ou menos doentes. Etiquetas: IVG |
Comments on "O blogue do não"
Excelente, Pedro.
Troquei alguns comentários num post de um dos "portugueses livres" precisamente sobre este aspecto.
Repito aqui o que escrevi lá :
"Eu sou pelo "sim, mas compreendo que alguém diga que a vida é sagrada (embora eu não perceba muito bem porquê, ou porquê só a vida humana), e consequentemente seja pelo "não". Mas neste caso, será sempre pelo "não".
Não se pode escolher o melhor de dois mundos."