Enquanto a justiça dos Homens se confundir com ideários de justiça divina, não haverá justiça. Os ideários de justiça divina só podem ter como resultado uma de duas coisas: ou o perdão de todos os pecados, próprio de quem pode dispor absolutamente da vida do pecador; ou a aplicação do princípio olho por olho dente por dente, próprio do mesmo poder absoluto sobre o pecador. E qual é a finalidade da justiça divina? A justiça divina não tem finalidade. É um fim em si mesma. Mas nós, Homens desprendidos do pensamento medieval, não podemos absolver pecados, nem matar quem mata, roubar quem rouba, violar quem viola, cegar quem cega, nem podemos dispor absolutamente da vida dos pecadores. Nós, Homens da pós-modernidade contratualmente feitos Estado, sabemos que as penas deverão ter fins socialmente úteis, dos quais são bons exemplos a ressocialização e a afirmação da vigência das leis perante a comunidade. Nós, Homens da razão, sabemos que a lei existe para ordenar a convivência humana e não para ganhar o paraíso. Sabemos que a nossa justiça deve ser laica. Sabemos que o facto de não sermos deus impede-nos de realizar justiça divina. Nós, Homens cosmopolitas, sabemos que a justiça divina é injusta - ou por defeito ou por excesso. Sabemos que a justiça divina, apesar de injusta, supostamente não erra. Mas nós erramos porque não somos omnipresentes. Nós, Homens esclarecidos, sabemos que não devemos entregar a justiça a milicianos de rua porque a sua justiça é irracional e desprovida de fins. É a justiça da vingança e do instinto. Sabemos que só deus poderá dispor da vida humana no seu juízo final. Mas nós, Homens razoáveis, sabemos também que deus não costuma andar por cá, e que por isso a justiça dos Homens deve abster-se de condenar à morte. Saddam Hussein foi condenado à morte. O julgamento do ex-ditador teve como alicerce a defesa dos direitos humanos. Encheu-se a boca para falar de direitos humanos antes do julgamento e durante do julgamento. Depois da aplicação da pena falar-se-á de direitos humanos. E assim vão os Homens, com a boca cheia de varejeiras. Etiquetas: Direito, Justiça |
Comments on "A justiça dos Homens"
Inteiramente de acordo com a lucidez ácida deste texto. Mas então Pedro, pergunto-lhe:
Ainda há condições para pedir clemência? E a quem pedir? A comunidade internacional pode fazer alguma coisa que não seja manifestar discordância?
Não será propriamente um pedido de clemência, mas esta condenação será provavelmente alvo de recurso.
Mas o cerne da questão não é a clemência, ou a possibilidade de recurso. O cerne da questão é que a pena de morte deve ser abolida. Mesmo para pessoas como Saddam Hussein.
Muito bem.
O que é que defendes então ?
Prisão perpétua ?
Mário,
o texto é contra a pena de morte. Mas, claro, não defendo também a prisão perpétua, uma vez que se encaixa plenamente na argumentação do post - e muito embora a prisão perpétua seja, relativamente à pena de morte, um mal menor.
É, como deves compreender, difícil estabelecer uma barreira. Mas a barreira, a ser estabelecida, terá de ser apta a cumprir fins sociologicamente úteis e não a cumprir uma qualquer sede de vingança, imprópria de um Estado que baseado no respeito pelos direitos humanos.
Considero que o limite português de 25 anos para os crimes mais graves aceitável.
Isto tudo só vem provar a razão duma sondagem recente que considerava Bush mais perigoso para a paz mundial que o pretenso eixo do mal. Esta gente faz o que quer com fundamentos de legitimidade, até quando? A questão que põe é pertinente, não se pode obviar ao mal com o pelo do mesmo cão. Mas esta é uma questão delicada que levou o Mário a perguntar se defende a prisão perpétua. Ora bem, caro Mário, a sua alternativa não é alternativa, pois a sentença de morte e a prisão perpétua redundam no mesmo. E com os custos e sobrelotação das prisões a 1ª substituirá sempre a outra. O que se tem de defender é penas adequadas ao crime, questão ela também delicada, mas enfim. Qualquer solução que não a pena de morte ou prisão perpétua é, certamente, melhor.
CLAP CLAP CLAP CLAP
Magnífico texto, Pedro!!
Obrigado, Max :)
é um pensamento laico: temos o dever de não-matar.
estou completamente de acordo contigo. e parabéns pelo texto.
Xor Z,
Para mim a prisão perpétua até é pior que a pena de morte, e por isso eu fiz a pergunta. Para mim, a vida não é apenas o bater do nosso coração. Mas isso é outra discussão.
Eu não acho que o Bush seja um perigo para a paz do mundo, (ou pelo menos no lugar que ocupa na lista), mas mesmo que seja pode estar descansado que daqui a dois anos ele vai embora.
Sempre que se falava da pena de morte, alguém lembrava sempre o Hitler. Agora não é preciso.
Eu compreendo os teus argumentos, Pedro. E também preferiria uma sociedade que não tirasse a vida a ninguém, nem a prendesse para o resto da sua vida, mas perante este caso concreto, qual a pena que se aplicava ? Esta é que é a questão. Não basta, quanto a mim, criticar a pena de morte. É preciso dizer qual a pena que se aplicaria ao Saddam.
Pedro, a tua opção de 25 anos, (que é muito tempo, é preciso não esquecer), é a que aplicarias neste caso ?
Mário,
não conheço o desenrolar concreto do processo, não conheço o que se deu como provado e o que não se deu como provado.
O mais difícil é estabelecer o máximo da moldura penal. Como já disse, aceito perfeitamente o limite máximo de 25 anos da lei portuguesa. Depois, dentro da moldura penal abstracta, jogarão as circunstâncias concretas do caso, que desconheço.
Qualquer pena de morte é condenável, seja porque razão for e porque meio ocorrerá.
Porque razão Bush também não é condenado pela assinatura, enquanto governador do Texas, de mais de 150 condenações á morte, portanto assassinatos?!
Cumprimentos