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segunda-feira, novembro 27, 2006

A síndrome de Procusto no direito


A síndrome de Procusto. Procusto, personagem mitológica, terá sido um indivíduo pouco dado à probidade nas suas relações sociais. Cruel e temido ladrão de carreira, deitava as vítimas numa cama. A sua cama era de ferro e possuía as medidas que Procusto considerava adequadas. Se a sua vítima excedesse as medidas da cama, Procusto cortava-a à medida correcta; se a sua vítima fosse menor do que a cama, esticava-a violentamente. Assim, Procusto ajustava, em altura, as suas presas à cama de ferro. À sua própria cama de ferro. Ora cortando-as, ora esticando-as. Para que tudo ficasse no seu devido lugar. Por fim, foi morto por Teseu. Para alívio de muitos.
Grosso modo, a interacção mundanal dos Homens baseia-se nos princípios ditados pela cama de ferro de Procusto: a valoração do comportamento do outro tem sempre como bitola o que subjectivamente representamos como sendo o comportamento ideal. Esta chave mestra, medida universal que todos carregamos dentro de nós – e que as mais das vezes não suporta desvios -, é limada pela cultura e pelas próprias experiências pessoais. Assim, cada indivíduo possui a sua própria medida que, por natureza – inclinação –, tende a impor ao outro. A sua própria régua com a qual mede o outro. Quando não impõe, olha, pelo menos, com desconfiança a conduta do outro. Fareja o outro. Arreganha os dentes. Eriça o pêlo. Rosna. Como se de uma questão de sobrevivência se tratasse.
Assim sucede no Homem, assim sucede no Direito. No Direito, a cama de Procusto revela-se mais presente do que seria desejável. Mesmo na conformação das relações entre particulares, onde é mais intensa uma certa concepção que vê o Homem como capaz de ser seu próprio regente, seu próprio guia, decisor do plano que traça e, portanto, onde a liberdade documentada no indivíduo enquanto verdadeiro actor do curso dos acontecimentos mais se deveria fazer sentir, a cama de ferro, ainda aqui, é esmagadora. Veja-se o exemplo da impossibilidade de serem legalmente contraídos matrimónios poligâmicos. Não da impossibilidade em si, em termos absolutos. Mas da impossibilidade de matrimónios poligâmicos havendo matrimónios monogâmicos. Ordem pública? Não. Cama de Procusto. Voltamos à ideia inicial: a valoração do comportamento do outro tem sempre como bitola o que subjectivamente representamos como sendo o comportamento ideal. O legislador limita a conduta privada do indivíduo, não conflituante com a esfera de liberdade do outro, de acordo com a sua própria medida. Resultado: o outro não vê a sua esfera de liberdade afectada, o indivíduo vê-se privado de parte da sua liberdade e a sociedade nada ganha com isso. A não ser, naturalmente, a satisfação e o gosto prazenteiro em fazer uso da sua cama de Procusto. O casamento homossexual. Duas pessoas pretendem unir-se mediante plena comunhão de vida. Vivem em comunhão de leito, mesa e habitação. Pretendem casar-se. Talqualmente um casal heterossexual. O respectivo casamento não entra em conflito com a liberdade do outro. É permitido o casamento heterossexual. Em nome de que interesse social não pode o casal homossexual contrair matrimónio? Em nome de quê esta desigualdade material? Em nome da cama de Procusto. Em nome da medida. Em nome da régua. Mas nunca em nome da liberdade.
A atribuição ao indivíduo do espaço de liberdade não gerador de hiatos na esfera de liberdade do outro é contributo importante para a realização plena da personalidade humana. Ora, essa ideia é alcançável com algo que já temos nos livros: uma nota de igualdade material entre os sujeitos destinatários das normas jurídicas, de não discriminação arbitrária, i. é, sem um fundamento material. O Direito deve estar ao serviço da plena realização humana. Não ao serviço de uma cama férrea qualquer. Assim: existindo o instituto do casamento para o grupo A, deve existir o instituto do casamento para o grupo B e C, a menos que haja um fundamento razoável para o não haver em qualquer dos três casos. Mas não há.
O sexo, um dos grandes tabus da Humanidade. Desde que o mundo acordou vivo, a prostituição existe. E nunca deixará de existir, por uma razão muito simples: o sexo é dos mais básicos instintos da Humanidade. Sempre houve oferta, sempre houve procura. Sempre haverá. A prostituição, em Portugal, não é crime – apenas o lenocínio. Mas não é uma profissão legalizada. Quais as vantagens da legalização da prostituição, enquanto exercida voluntariamente? Muito poucas, é bem de ver: maior controlo médico-sanitário; diminuição provável das doenças infecto-contagiosas; diminuição provável dos custos na prevenção das doenças infecto-contagiosas; diminuição drástica da «prostituta de rua»; aumento da receita fiscal; percebimento de pensões de velhice e invalidez por parte das prostitutas; maior controlo sobre a violência infligida à prostituta; aumento do bem-estar físico, mental e social – a final de contas, da saúde – da prostituta, entre muitas outras. Quais as desvantagens da não legalização da prostituição, enquanto exercida voluntariamente? Muitíssimas, é bem de ver: a cama de Procusto.
Estes exemplos estão na ordem do dia. Mas muitos outros, infelizmente, grassam pelo nosso Direito, seja em que ramo for. Ao longo da História, a cama de Procusto no Direito tem vindo, gradual e lentamente, a enferrujar. Em nome da máxima liberdade relativa possível, ao serviço da plena realização da pessoa humana. De toda a pessoa humana. Estou seguro de que é para lá que caminhamos. Pernoitando sempre, porém, numa cama de ferro.

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Comments on "A síndrome de Procusto no direito"

 

Blogger Maria do Rosário Sousa Fardilha said ... (novembro 27, 2006 4:41 da tarde) : 

Este texto está excelente. Note-se apenas que o Direito emana da sociedade em que vivemos. Deitam-nos na cama de Procusto desde muito pequenos, até acharmos "natural" termos os pés cortados. Por outro lado, se esta teorização serve os exemplos apresentados, não serve muitos outros. A verdade é que não seria possível vivermos numa sociedade (não) regulada pela anomia. O problema é o de encontrar a justa medida, não é?

abraço

 

Blogger Ant.º das Neves Castanho said ... (novembro 27, 2006 7:17 da tarde) : 

Morte a Procusto!


(Re)viva Teseu!

 

Blogger Claudia Gonçalves said ... (novembro 27, 2006 7:34 da tarde) : 

Confesso que gostava de ver um Sr Cicrano ou Beltrano a chegar a casa com um recibo de prestação de serviços de uma hipotética D. Gina. E também gostava de ver se a arte expandia ou estagnava, tendo de declarar e descontar dos seus rendimentos como qualquer cidadão. E já agora podiam surgir grandes empresas onde os sócios gerentes seriam os ex-proxenetas, agora business men e RP da noite!!!
De qualquer modo não é por ser a profissão mais antiga do mundo que entendo que deva ser legalizada, mas já que não se pode lançar uma bomba atómica sobre esta realidade, então que de facto se controle a coisa e isso só se consegue com a legalização.Assim punha-se mão no tráfico de mulheres; nos agiotas que as trazem, confiscam a documentação e perseguem com os juros escabrosos;nos chulos; para além, claro, da questão de saúde pública que também o é indiscutivelmente.

 

Blogger David Afonso said ... (novembro 28, 2006 2:29 da manhã) : 

Post muito bom. Espero que arranjes tempo para escrever mais uns como este :)

 

Anonymous Anónimo said ... (novembro 29, 2006 2:07 da manhã) : 

Adorei o texto. Está mesmo muito bom! Estou totalmente de acordo com tudo o que diz e gostei muito dos paralelismos, mas não resisto a fazer de advogada do diabo:
- Quanto aos problemas da proibiçao dos casamentos do "tipo B e C", podemos considerar que o Direito não está a fazer limitações, apenas está a previligiar aqueles que, pela sua união, serão úteis para a sociedade, na medida em que esta só é assegurada com a reprodução, que deverá, pelo casamento e as vantagens que dele advêm, ser fomentada. (Caso se lembre da adopção pelos homossexuais, podemos sempre refutar com o complexo de édipo.)
- Relativamente à legalização da prostituição: Apesar das inegáveis virtudes, já pensou na quantidade de jovens que, pela banalização da actividade, poderão enveredar por esse caminho - agora eu era uma freira - longe de terem consciência daquilo que podem estar a sacrificar para o resto das suas vidas?

Pronto, aqui está a contestação.

 

Anonymous Anónimo said ... (agosto 19, 2008 9:06 da tarde) : 

Perde os seus direitos laborais por não aceitar um emprego de prostituta
La Voz de Galicia
Uma jovem alemã de 25 anos, informática no desemprego, viu-se abrigada a tomar uma difícil decisão: aceitar um trabalho num bordel. A não ser assim, o Estado cortar-lhe-á drasticamente as suas prestações por desemprego.
A jovem, cuja identidade não foi revelada, fez o mesmo que todo o mundo para procurar trabalho: enviou o seu currículo a várias bases de dados com a esperança de que algum empresário reparasse nela. No seu historial laboral acrescentou como experiência que tinha trabalhado numa cafetaria como garçonete e que não se importaria de repetir se fosse necessário. Foi assim que lhe chegou uma oferta de um «bar nocturno» cujo proprietário «estava interessado no seu perfil». Só ao chamar por telefone averiguou que se tratava de um bordel e o emprego incluía «serviços sexuais».
A reforma da legislação alemã em matéria de emprego estabelece que qualquer mulher menor de 55 anos que leve mais de um ano desempregada é obrigada a aceitar qualquer emprego, incluindo a prostituição, legal no país desde há dois anos. Quem se negue a isso verá cortados os seus direitos em matéria de prestação social.
O Governo considerou a possibilidade de fazer uma excepção com os bordéis por motivos éticos, mas à última hora decidiu que seria demasiado complicado estabelecer diferenças entre os diferentes tipos de bares. Assim, um bordel pode aceder a bases de dados de aspirantes a trabalhos com os mesmos direitos que uma clínica que procure enfermeiras, por exemplo.
Assim, a jovem descobriu que o empresário cumpria estritamente com a lei quando lhe ofereceu um emprego que incluía serviços sexuais. Mais ainda, a mesma legislação prevê que se o empresário não aplica a norma de denunciar quem renuncie à oferta, pode ser sancionado se é denunciado por empresários da concorrência.
Este não foi o único caso. Raparigas que trabalharam como telefonistas foram contactadas para se incorporarem em linhas eróticas; a uma jovem de 23 anos enviaram-na a uma entrevista para um posto de «modelos para nus»; devia informar sobre o encontro.
Os empresários que se dedicam à prostituição argumentam que a sua actividade é legal e ademais cumprem com as suas obrigações fiscais. Tatiana Ulyanova rege um bordel em Berlim e pergunta-se: «Por que não posso aceder a uma base de dados pública se pago os meus impostos como todo o mundo?». Outro empresário pediu 12 prostitutas, mas a agência de emprego retirou o seu anúncio.
O paradóxico caso da jovem informática reúne o pior da nova legislação laboral com a legalização da prostituição: «As novas regulações estabelecem que o trabalho na indústria do sexo não só não é imoral, mas que não se podem deixar estes trabalhos sem o risco de perder direitos», denunciou uma advogada alemã especialista neste tipo de casos.

Sobre a legalização da prostituição há sempre este perigo de colocar mais alguém na cama de Procusto.

 

Anonymous Anónimo said ... (maio 28, 2010 4:24 da manhã) : 

De fato Procusto tem muito haver com o Direito, não importa aonde for... o meu medo é, será que não existe um procusto dentro de Teseu? Qual o direito que Teseu tem de matar o subjetivista procustiador; o de legítima defesa?

 

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