Hortaliças de sobrevivência
Vim morar para o subúrbio em 1983. Na altura fiquei com a sensação que tinha mudado de país, até porque ir ao médico a Lisboa passou a ser necessário quase um dia inteiro. De certa forma até tinha mudado de país. No país onde eu vivia não tinha matas ao lado de casas, havia telefones públicos e não havia tantos buracos. Mas principalmente não havia, ou pelo menos eu não via, hortas. Essa foi uma realidade a que tive de me habituar. Os homens no subúrbio dedicavam-se à inevitabilidade de ocuparem um terreno baldio para passarem todo o tempo disponível a cavar e plantar couves-galegas e batatas. O meu pai não foi excepção, e mesmo o meu ódio visceral à couve-galega não foi suficiente para o afastar da horta de onde o nosso Trix (o nosso pastor alemão), acabou por ser roubado (mais uma boa razão para eu odiar aquilo). Quando eu cheguei ao subúrbio, a camioneta das mudanças, de cuja janela eu vim dependurado, trouxe-nos por um tortuoso percurso que mais tarde identifiquei como sendo a estrada de Sintra. Ai todos os bons pedaços de terreno laterais à estrada, tinham sido devidamente aproveitados para fazer divisões em contraplacado ou Lusalite, o que continuou a acontecer após a construção do IC19 ou da N117. Nesses locais todos os portugueses involuntariamente suburbanos e órfãos de um passado quase sempre rural, tentavam produzir bens de consumo que permitissem canalizar o pouco dinheiro para outras prioridades. Essa realidade acabou, mas as hortas continuam a existir. Os portugueses já não cavam couves-galegas, nem batatas ou raminhos de salsa nos baldios. Continuam a alimentar uma nostalgia rural, mas afogam as suas mágoas nos cafés e agradecem o advento da Sport TV. Mas as hortas, essas continuam nos mesmo baldios ou noutros que entretanto surgiram à medida que foi aumentando a pressão urbanística. Mas agora os agricultores são de outras raças e origens. Não são brancos, ou nalguns casos são mais brancos. Nunca ouviram dizer que o Alentejo era o celeiro de Portugal e nunca quiseram uma vivenda com azulejos. Uma visita de fim de semana a qualquer hipermercado no subúrbio permite ver que essa hortas de beira de estrada estão cheias. Cheias de couves-galegas, batatas e cheias de gente que avidamente divide as suas hortas com o mesmo contraplacado e o mesmo Lusalite anteriormente utilizado pelos portugueses. Nós vamos de carro e eles indiferentes, cavam. Os protagonistas são diferentes mas a razão é a mesma. Sobrevivência |
Publicado por José Raposo às 22:31
Comments on "Hortaliças de sobrevivência"
Sempre que via essas hortas, lembrava-me sempre de um tio meu que também tinha uma, não por uma questão de sobrevivência, mas sim porque tinha o espaço e o tempo entre as mãos para fazer aquilo florescer. Era o contacto mais próximo que tinha deste fenómeno. Eu e os meus pais sempre morámos em prédios rodeados de mais prédios. Felizmente só havia espaço suficiente para jogar à bola...