Catarse I
Estamos definitivamente em catarse em relação ao Estado Novo e à figura de Oliveira Salazar. Era inevitável que um país pequeno, que ao contrário de outros, não analisou e escrutinou devidamente o seu passado, tivesse de o fazer mais cedo ou mais tarde. Nestas matérias é natural que as franjas saudosistas do passado, sempre mais expressivas em tempos de crise, na habitual procura de bodes expiatórios, sejam mais militantes, que apareçam mais vezes na comunicação social, e que esta acabe involuntariamente por lhes dar uma projecção que na realidade não têm. Foi como no referendo. O SIM radical e o NÃO radical optaram por nos dar exactamente o mesmo panorama obscuro, apenas para nos convencerem com as suas diferentes conclusões dramáticas. Na realidade a maioria dos portugueses, não estava, nem está interessada nesta temática. Com a questão de Salazar e da Ditadura acontece quase o mesmo. As franjas pretendem apresentar-nos o pior dos cenários para suportarem as suas próprias conclusões. Seja motivado por um concurso de personalidades ou por inauguração de um museu, a questão entrou-nos pela casa adentro e agora temos de lidar com ela. Talvez até seja positivo. O problema está na falta de soluções que a democracia encontrou para resolver os problemas herdados da ditadura. Naturalmente os portugueses não são fascistas. Naturalmente a generalidade dos portugueses não está interessada em andar pelas ruas do rectângulo, a fazer a saudação fascista a gritar Salazar, Salazar, Salazar. Aliás, ainda que haja um certo sentimento de nostalgia, em algumas classes sociais e em alguns estratos etários, pelo ordeiro funcionamento do Estado Novo, isso deve-se exclusivamente ao aproveitamento e vida fácil dos primeiros e condicionamento ideológico dos segundos, que o tempo demora a curar. Temos de ser honestos. Para pessoas como os meus pais, vindos de um interior rural, este mundo em que vivemos é assustador e inseguro. E independentemente das dificuldades com que lidaram na juventude, tudo parecia melhor organizado e seguro, porque tudo era devidamente tutelado por alguém que sabia tudo e que estava em todo lado. Dirão alguns que o fascismo em Portugal nunca atingiu os níveis de orgia de violência que atingiu noutras paragens. É verdade, mas isso não o torna bom. Para alguns o fascismo é apenas uma alergia bacteriológica necessária numa lógica de contexto europeu de pós guerra e para pôr fim ao regabofe que se tinha tornado a Iª República. Para outros, o país manteve-se independente, o que em si é um disparate inqualificável pensar que uma nação centenária, com um regime de índole nacionalista, se poderia diluir irremediavelmente numa qualquer realidade estrangeira, seja ela espanhola ou alemã, ou até não conseguir sobreviver a uma guerra mundial que na nossa posição periférica seria sempre mais branda, mas que ainda assim conseguiu sobreviver a 60 anos de domínio de uma potência mundial no século XVI e XVII. Estes argumentos enchem a boca de muitos e vivem muitas vezes à volta de dois “milagres” salazaristas. O económico, esse milagre que pertencia a meia dúzia de proprietários industriais e a latifundiários e que deixava aos restantes portugueses as aparas e as côdeas duras. E o educativo, esse milagre que todos invocam da escola em cada esquina, cujo sucesso é de tal forma esmagador que não nos permite perceber, e a eles explicar, como é que acabámos por ser o país da Europa ocidental com maior nível de analfabetismo. São estas e outras (nem sequer quero falar da Guerra Colonial) algumas das razões que permitem alimentar o chorrilho de saudosismos mais ou menos inócuos a que temos assistido. |
Publicado por José Raposo às 22:46
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