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sexta-feira, abril 29, 2005

Miguel Sousa Tavares

A propósito ainda da sentença do Tribunal de Ponta Delgada que condenou a rede pedófila, na qual o tribunal se recusou a aplicar o artigo 175º do Código Penal por violação do princípio da igualdade (v. o meu artigo "Inconstitucionalidade"), Miguel Sousa Tavares [MST] escreve na sua crónica de hoje no Público:
"O que o tribunal fez foi dar preferência ao direito à orientação sexual do pedófilo sobre o da própria vítima. Aquele poderá ser o que quiser e o que a Constituição e a lei lho permitam. Mas, quando se abusa de uma criança, é aberrante que a sua orientação sexual se imponha ainda à da criança - que, em muitos casos, não está ainda sequer definida. Ou o tribunal achará que para um rapaz de 10 anos, por exemplo, é igual o trauma de ser abusado por uma mulher ou por um homem? Esta sentença revolta e indigna."
Discordo plenamente. Transcrevo aqui o princípio da igualdade, talqualmente se encontra definido na nossa Constituição:
(Princípio da igualdade)
1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.
O princípio não proíbe que haja diferenciações na lei. O que é vedado pelo princípio é, sim, por um lado, o arbítrio, i. é, diferenciações de tratamento sem um fundamento material razoável segundo critérios de valor objectivo. Por outro lado, proíbe ainda a discriminação - parafraseando, proíbe distinções de tratamento apoiadas em categorias meramente subjectivas, tais como as que são indicadas, não exaustivamente, no n.º 2 do artigo 13º da Constituição (onde se inclui a orientação sexual).
Por aqui já se compreende não haver fundamento material razoável para a distinção estabelecida nos artigos 174º e 175º do Código Penal. As condições de punibilidade da conduta do homossexual são desproporcionadamente mais gravosas em relação à do heterossexual, i. é, a fronteira da punição ou não punição, em certas condições referidas no meu artigo supra referido "Inconstitucionalidade", é traçada consoante a orientação sexual do abusador. O tal fundamento material razoável, para Miguel Sousa Tavares é o de que uma criança sofrerá maiores traumas se for abusada por uma pessoa do mesmo sexo. Mas como é que MST sabe? E se é assim em muitos casos, não haverá casos em que se verifique a situação contrária? E, nestes últimos casos em que a criança sofre menos traumas com uma relação homossexual, já será de recusar a aplicação da norma? De um outro ângulo, o que está aqui em jogo é a punição pelo direito penal de uma conduta atentatória do bem jurídico "autodeterminação sexual", não a avaliação do quantum de trauma sofrido pela criança, consoante tenha sido violada por um homem ou por uma mulher - quantum, esse, indeterminável. Subjaz aqui, parece, ao pensamento de MST, uma certa concepção moral cada vez mais ultrapassada, eivada em axiomas tais como "seria um trauma para a criança ser adoptada por um casal homossexual". Ora, fundamento material razoável aqui não há.
Por outra via, o princípio da igualdade proíbe distinções de tratamento fundadas em categorias meramente subjectivas, de que é exemplo a orientação sexual. Ostensivamente é o que faz o artigo 175º do Código Penal.
Por último, será de referir que o Acórdão de 9 de Janeiro de 2003 do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (caso n.º 45330/99) considerou que um preceito, entretanto revogado, do Código Penal austríaco, semelhante ao actual artigo 175º do Código Penal português, atentava contra direitos consagrados na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, bem como já deram entrada na Assembleia da República propostas de lei no sentido da revogação do preceito.
Em suma, reafirmo o meu aplauso à recusa de aplicação deste artigo por parte do tribunal de Ponta Delgada. E a minha veemente discordância com MST, que de quando em vez tira estes coelhos da cartola.

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Comments on "Miguel Sousa Tavares"

 

Blogger Daniel Cardoso said ... (abril 29, 2005 10:29 da tarde) : 

Permitam-me que discorra um pouco sobre um tema pelo qual tenho uma grande paixão.

As crianças e os adolescentes passam por uma fase em que estão profunda e necessariamente envolvidos numa coisa chamada "homossexualidade estruturante". Durante esta fase, o jovem convive principalmente com pessoas do seu próprio sexo (os grupinhos de rapazes e raparigas que estão sempre juntos são a homossexualidade estruturante em prática), e é desta forma que aprendem a comportar-se "de acordo" com o seu género segundo as regras de convivência da sociedade em que se insere [note-se aqui que não estou a fazer juízos de valores sobre esta questão, apenas a transmitir factos obseráveis e reais]. Percebe-se portanto porque é que a Sociologia (como a Psicologia) considera o grupo de amigos como um dos elementos-chave no processo de socialização e de organização do espaço psicológico. A violação, a acontecer como acto homossexual, pode muito bem criar traumas em relação aos companheiros com os quais se deveria juntar para formar parte da sua personalidade e identificação sexual própria. Ademais (em idades mais ternas: 3/4 anos) o complexo de Édipo/Electra é resolvido em relação ao progenitor do mesmo sexo.
Assim sendo, parece-me a mim razoável concluir que a violação homossexual poderá talvez trazer ainda mais complicações do que a heterossexual. Atenção, isto não são conclusões científicas retiradas de algum lado, são apenas conclusões a que chego baseadas nos conhecimentos acima citados; se qualquer maior entendido me quiser contradizer, tenho de acatar.

Isto para além de que, como já tinha dito, a questão releva do catolicismo e dos laivos de direita que ainda emprenham as mentes deste país.

Prometeu

 

Blogger Pedro Santos Cardoso said ... (abril 30, 2005 1:27 da manhã) : 

Pois, Prometeu. Mas a questão é que o direito penal não se ocupa de meras possibilidades, nem do maior ou menor grau de traumatismo inflingido à vítima. Ocupa-se apenas na protecção de bens jurídicos. No caso, do bem jurídico "autodeterminação sexual". E a escolha sexual do agente deve ser indiferente. O mesmo tipo legal de crime deve ter as mesmas condições de punibilidade, se se quer realmente ver os fins das penas numa óptica de prevenção geral positiva (reintegração da norma violada na ordem jurídica) e de prevenção especial positiva (reinserção do agente na sociedade) - não num prisma de retribuição pelo mal criado na vítima (concepção ultrapassada no nosso ordenamento jurídico).

 

Blogger David Afonso said ... (abril 30, 2005 2:22 da manhã) : 

Ó Pedro!

Parece que o MST cometeu uma pequena imprecisão e tu foste na dele! O que estava em causa era «acto sexual com adolescente» e não a pedofilia propriamente dita. Creio que as duas situações são tratadas de modo diferente pela lei. Seja lá como fôr concordo com a tua interpretação e com a do Tribunal de Ponta Delgada

 

Blogger Pedro Santos Cardoso said ... (abril 30, 2005 2:54 da manhã) : 

Não David, o Código Penal nem sequer se refere ao termo pedofilia. Pura e simplesmente, não existe. A única diferenciação que o Código Penal faz é em relação às idades (0-13 anos e 14-16 anos). O termo pedofilia vem da medicina, não é jurídico.

 

Blogger Pedro Santos Cardoso said ... (abril 30, 2005 11:26 da manhã) : 

E, se se quiser chamar pedofilia apenas a abuso sexual de menores e não a actos sexuais/homossexuais com adolescentes, era apenas uma forma de identificação do caso, uma vez que penso que houve no processo crimes das duas espécies.

 

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