A Mão Invisível, Por Vezes, Sofre De Parkinson
Ontem contestei este post de João Miranda, do Blasfémias. Houve réplica do mesmo João Miranda. Cumpre-me agora exercer a tréplica. O João Miranda afirma que eu não percebo algumas coisas essenciais; o que o João não entende é que eu percebo as coisas sim, mas de maneira diferente: 1) «Que a liberdade é a liberdade de cada um fazer o que entender com o seu tempo e a sua vida. É o direito de cada um trabalhar para os seus próprios fins. A obrigação de cada um trabalhar para pagar impostos ao estado para que depois o estado possa subsidiar computadores não é liberdade. Não é por acaso que se diz que o estado quer incentivar o comportamento X. O estado só precisa de incentivar o comportamento X porque de outra forma as pessoas, tendo liberdade, prefeririam o comportamento Y. O que se pretende com esta medida é mesmo mudar os comportamentos que as pessoas teriam se pudessem gastar o seu dinheiro de acordo com as suas preferências.» Claro. Cada um tem pleno direito de trabalhar para os seus próprios fins. Isso é inegável. Mas também é inegável que existe uma entidade denominada Estado que deve trabalhar para os seus próprios fins. E os fins do Estado são a plena realização do bem comum, do interesse público. E será esta uma medida que promove o bem comum? Antes do mais, deixe-me notar que o Estado não «subsidia computadores» com esta medida – a dedução fiscal de que beneficiam as famílias é apenas um meio para atingir um escopo. Esta medida tem um propósito muito claro: promover a qualificação dos portugueses. E a aposta na formação é, como se sabe, factor fundamental para o desenvolvimento de uma economia – ou o João Miranda pensa que quanto mais analfabeto for um país mais próspero será? Destarte, esta medida é de interesse público e promove o bem comum. O que o João Miranda não me consegue provar é que, lá porque as pessoas, tendo liberdade, iriam preferir o comportamento Y, esse comportamento é benéfico ao bem comum. Nem tão pouco que tentar mudar o comportamento que as pessoas teriam se pudessem gastar o seu dinheiro de acordo com as suas preferências é mau. Um exemplo: um Estado, ao prescrever leis de defesa da concorrência, ou mesmo até a proibir práticas como o dumping, está, claramente, a tentar mudar o comportamento das pessoas. Já se sabe que cada um trabalha para os seus fins. Assim, caso não houvesse tais leis ou proibições, as pessoas adoptariam o comportamento que melhor as levasse a alcançar tais fins. Só que os fins de uns colidem com os fins dos outros – a concorrência selvagem visa aniquilar o adversário -, e o resultado seria uma série de falências. 2) «Que a actividade económica serve para satisfazer os objectivos da procura. Que aquilo que cada agente procura depende da sua situação em particular. Que a situação particular de cada agente em particular é extremamente específica. Que só cada um é que pode saber de si. Que o estado não pode saber o que é que cada um precisa nas suas circunstâncias. Por isso, sempre que o estado incentiva o que quer que seja, está a deturpar a actividade económica, está a destruir os mecanismos naturais da economia e a introduzir atrito na aproximação entre a oferta e a procura. Claro que o Pedro não percebe este argumento porque vê a economia como uma actividade em que os agentes económicos são um rebanho de obedientes débeis mentais sem vontade própria dirigidos pelos sapientes membros do governo que tudo sabem e que tudo controlam.» O João Miranda parece também não entender que os objectivos da procura são mais rapidamente satisfeitos com capital humano de qualidade, e que os mecanismos naturais da economia actuam com melhor eficácia com pessoas qualificadas. Claro que o João Miranda não percebe isto que afirmei, porque, afinal de contas, para o João apenas existe oferta e procura, mais nada, e a seu ver a aposta estadual em novas tecnologias é um tenebroso inimigo público cujas mandíbulas perniciosas irão corroer a nossa economia até à bancarrota. 3) «Que o motor das economias modernas não é a tecnologia mas a liberdade económica, que é o que permite a adequação da oferta à procura. As tecnologias são apenas um meio, um meio entre muitos outros, um meio que pode, ou não, ser adequado à produção de bens que as pessoas procuram. O estado não tem que limitar a liberdade dos empreendedores impondo uma determinada solução para o problema de como melhor satisfazer a procura. Esse é um problema que tem que ser resolvido pelos empreendedores. É que nem sempre a solução tecnologicamente mais evoluída é a mais económica. O que conta, numa economia moderna não é a intensidade tecnológica, mas a adequação dos meios aos fins e a utilização tão económica quanto possível dos meios disponíveis. Uma empresa que substitua prematuramente meios arcaicos baratos por meios tecnológicamente sofisticados, mas caros, não optimiza os meios disponíveis e perde dinheiro.» E porventura o Estado, ao apostar na formação e melhor qualificação dos portugueses, está a limitar a liberdade dos empreendedores ou seja de quem for? Será que o João Miranda não se consegue libertar um pouco da prisão dos manuais escolares e pensar que há outros factores para além da ‘oferta e procura’? Diga-me uma coisa: para onde nos levará o simples jogo invisível da oferta e da procura com mão de obra e empresários pouco qualificados? Não precisa responder. Quanto à sua frase final, é possível até que a substituição de meios arcaicos por meios tecnologicamente sofisticados, mas caros, não venha a optimizar os meios disponíveis. Mas lá está outra vez o João a fazer confusão. A medida do governo não pretende incentivar a compra de computadores como fim em si mesmo; pretende aumentar os níveis de qualificação das pessoas. Assim, reformulando a sua frase, eu diria que a substituição de pessoas pouco qualificadas por pessoas com melhor formação só é benéfica e aumenta a produtividade e o crescimento. 4) «Que as pessoas já compram computadores e que grande parte deste incentivo será gasto por pessoas que de qualquer das formas já iriam comprar um computador. É essencialmente por isso que a medida é inútil. Desviará recursos daqueles que não querem computadores (e que precisam desesperadamente de outras coisas) para aqueles que os querem, e estes últimos desviarão os 250 euros poupados para actividades que nada têm a ver com a sociedade da informação. Ou seja, com esta medida, o estado poderá estar a subsidiar viagens às Maldivas.» O João Miranda não excogita sequer a hipótese de haver famílias que realmente necessitam desta ajuda para comprar computador? Famílias cujo rendimento é tão escasso [tão difícil de encontrar famílias desta espécie rara em Portugal...] que, apenas perante uma dedução fiscal desta natureza, se decidam pela compra de um computador? Não, claro que não. Porque provavelmente o João desconhece que esta medida só será aplicada a famílias que não se enquadrem nos escalões de rendimentos mais elevados. Pela sua ordem de ideias, Portugal devia ter recusado quaisquer fundos comunitários, uma vez há aqui um desvio de recursos! 5) «Que todas as leis discriminatórias discriminam todas as pessoas sem excepção que reunem a condição X. Se priviligiar as pessoas com filhos não é discriminação então podemos priviligiar todos os que falam português, que não moram na Cova da Moura, que têm mais de 25 anos, que são do Benfica, que trabalham na função pública ou que são do Partido Socialista. Aliás, a ideia de que todos podem beneficiar desta medida é falaciosa. Há quem não possa ter filhos por ser estéril, há quem não queira ter filhos, há quem já seja velho de mais para ter filhos e há quem já tenha computadore e não precise de mais nos próximos tempos.» Já lhe dei a entender, caro João Miranda, como é que a ordem jurídica portuguesa entende o princípio da igualdade. Este princípio não proíbe que haja distinções ou diferenciações. Proíbe que as haja, sim, quando não sejam suportadas por um fundamento sério, razoável, materialmente objectivo. No caso em análise, há um fundamento razoável: como já afirmei, pretende-se atingir os jovens em idade escolar, porque é precisamente essa camada etária que urge mobilizar para as novas tecnologias. Já os exemplos que o João refere, considerados apenas como os considera - em abstracto -, violam o princípio da igualdade porque não há aqui um fundamento sério para a dintinção; mas se, em concreto, houver tal fundamento, não haverá violação. 6) «Que aquilo que é necessário a cada momento varia de pessoa para pessoa e de circunstância para circunstância. Por incrível que possa parecer a alguns, a sociedade da informação não é uma prioridade para mais de 70% da população portuguesa. Para a maior parte das pessoas, um computador está no fim da lista de prioridades. E por muito boas razões.» Precisamente pelo facto de a sociedade de informação não ser uma prioridade para boa parte da população portuguesa (70% não será um pouquinho exagerado?), é que urge inverter esta tendência. O uso das novas tecnologias é alicerce fundamental para Portugal competir no contexto mundial em geral, e europeu em especial. Faça uma visita de estudo a um qualquer país de info-excluídos, que não aposte na qualificação das pessoas nem tão pouco em I&D - enfim, um país de analfabetos -, e verá como funciona lá o gráfico da oferta e da procura. Os computadores estão, afirma, no fim da lista de prioridades por boas razões. Por boas razões? Quais? 7) Imagino o João Miranda a governar o país. Vejo-o sentado, na sua cadeira giratória, cantarolando «laissez faire, laissez passer», num gabinete cheio de telas com gráficos de oferta e procura. Vejo a sua secretária a entrar e a perguntar «Sr. Primeiro-Ministro, quais serão as suas próximas actividades?» «Muito poucas, Maria, muito poucas. A Mão Invisível trata de quase tudo.» O pior é que a Mão Invisível, por vezes, enferma de Parkinson e treme com tudo. Etiquetas: Economia, Política Nacional |
Publicado por Pedro Santos Cardoso às 22:13
Comments on "A Mão Invisível, Por Vezes, Sofre De Parkinson"
eu gostava que você andasse nos chats e visse como os miúdos escrevem e depois vinha-me falar que o estado estava a apostar na qualificação ...
Se querem apostar na qualificação, apostem no aumento de exigência de ensino ...
Mais, se um dos grandes problemas do nosso capital humano é ser pouco qualificado - as pessoas com 40, 50 e 60 anos, porque diabo se privilegia que as têm filhos tenham direito a ter uma poupança de 250 euros num computador ?
Quem não percebe os mecanismos do mercado e da mão invísivel, nunca é capaz de compreender que não consegue fazer com que os consumidores se comportem como querem, mas que apenas vai distorcer a procura ... Uma coisa é impôr regras para assegurar o bom funcionamento do mercado, e ter capacidade de enforcement, outra bem diferente é tentar mudar as preferências dos consumidores através de subsídios ... Só os gajos altamente estatistas, sejam de esquerda ou de direita é que podem defender estas abstrusidades ... Já agora, se eu tiver um negócio que não seja de computadores, estou a ver a minha rentabilidade do capital afectada, porque os tipos que investiram em distribuição de computadores estão a ser subsidiados pelo estado ... Acha isso bem ???
Caro b,
sei perfeitamente como os miúdos (e não só os miúdos...) escrevem. Um desastre. Concordo em absoluto consigo quando afirma que é necessário aumentar a exigência de ensino. Mas, quanto a esta medida do governo, considero-a uma boa medida.
Quanto à questão daquilo que afirma ser um «privilégio» para as pessoas que não têm filhos, já não concordo consigo. Não é privilégio algum. Seria disparatado tentar captar pessoas em idade de reforma para as novas tecnologias! É claro que devem ser os jovens em idade escolar os destinatários.
Quanto ao resto, meu amigo b: mas o senhor acha mesmo que alguém vai comprar um computador se não quiser o comprar? Porquê? Por causa da dedução fiscal? Por favor... É óbvio que não há aqui qualquer mudança nas preferências dos consumidores, sim um simples incentivo fiscal. Um conselho: não fique muito agarrado aos manuais escolares, caro b (a propósito, é mesmo este o seu nome?). Depois diz coisas de cor e sem pensar. Se eu não quiser comprar um computador, não há-de ser um benefício fiscal que me vai obrigar a fazê-lo.
Cumprimentos