Dolo Eventual Memória
Foi em 12, 14, 15, 16, 17 e 18 de Abril que David Afonso escreveu, numa série de posts, um texto intitulado "É a América Um Estado Ocidental?". “A América é uma Europa no exílio.” Jorge Luis Borges “Um novo Império, uma nova burrice.” Nietzsche Devemos muito aos EUA. Entre muito daquilo que já se sabe da história todos os povos fracos devem sempre alguma coisa aos povos fortes, nem que seja a sua própria segurança. Muitas vezes o potencial agressor e o providencial protector são o único e mesmo povo. Somos aliados dos americanos porque os tememos. Mas também os tememos porque somos seus aliados. A todo o momento, a economia de guerra norte-americana exige mercado. A guerra é a continuação da economia por outros meios. E esses outros meios – militares e tecnológicos - são monopólio do Império do Atlântico. Seja lá como for, sabemos que o nosso turbulento amigo manter-nos-á para sempre reféns da nossa eterna divida de gratidão. Afinal de contas eles resolveram-nos duas guerras fratricidas. Seremos cúmplices de todos as suas acções, nunca poderemos nos situar fora da história porque todas as guerras americanas são guerras da Europa. Até porque só existe um lado, o do Império. E não existe história fora do Império. O poder é, obviamente, este hard power, ou seja, o poder da força, mas é também o soft power (Joseph Nye), ou seja, a capacidade de uma nação de influenciar as outras pela sua ideologia, seu sistema de valores, sua cultura. Indiscutivelmente a América é também Império neste sentido. De certo modo, também lhes devemos a consciência de uma identidade própria, a Identidade Europeia. Não sabemos lá muito bem o que somos enquanto União Europeia, sabemos no entanto que não somos americanos. À falta de uma definição interna e essencial, definimo-nos de uma forma externa e acidental, somos ocidentais que [ainda] não são americanos, somos o que resta. O anti-americanismo é, de resto, o único traço comum entre as massas do Velho Mundo. Para além das nossas inultrapassáveis divergências, convergimos numa censura contra a barbárie americana. Tal não é algo de negativo porque significa que o nosso instinto de sobrevivência ainda subsiste e poderá ainda significar que haverá afinidades muito mais profundas do que as que poderia parecer à primeira vista, as quais se revelam a partir do contraste com a América. Redescobrimos Europa através da América. Não nos podemos esquecer de que o Novo Mundo é filho do Velho Mundo. Todos nós somos herdeiros das matrizes judaico-cristã e greco-romana. E mesmo dentro a amálgama do melting-pot americano, era esta linha que originalmente o definia e não outra. Convém também lembrar que o fenómeno melting-pot nunca foi uma verdadeira fusão de culturas e de povos, porque o único modelo dominante foi sempre o ocidental e, por outro lado, esse fenómeno nem é de agora nem é exclusivamente americano porque toda a história da Europa e de cada uma das suas nações, é uma história de intercâmbios culturais, económicos e genéticos. Somos intimamente africanos, asiáticos, árabes, judeus, eslavos, para além de tudo o resto. Incorporámos na nossa cultura e no nosso código genético os contributos de um número indefinido de povos. O sucesso do ocidente sempre esteve na sua abertura. Sempre que nos encerramos sobre nós próprios tornamo-nos fracos e entramos em crise. Esta abertura, de resto decorre das nossas próprias raízes comuns e originais herdadas: dos gregos o compromisso com a Razão; dos romanos o Estado e o desenho da Europa; dos hebreus o amor ao livro e a consciência do Tempo; do cristianismo o humanismo universalista. A pergunta “É a América um estado ocidental?” não é de todo despropositada. Pelo menos se nos referirmos à matriz original que moldou o Ocidente. Dizia Jean Baudrillard que “A América é a versão original da modernidade”, querendo dizer com isto que havia abolido o passado. Abolir o passado implica abolir o futuro, porque perde-se a perspectiva temporal que nos permite projectar no futuro, planificando-o. Vive-se numa perpétua actualidade. É também esta obliteração do tempo que impede aos EUA a compreensão da importância de um planeamento a longo prazo do desenvolvimento humano em termos ecológicos. O colapso ecológico é demasiado longínquo. Quinze minutos é a medida americana. E quinze minutos até são uma eternidade no zapping televisivo, que veio substituir a reflexão. Este Império é também o Império da Imagem. Por outro lado, os EUA não são um estado mas uma federação de estados que exercem um poder global de uma forma desterritorilizada, segundo a qual o poder se exerce não através da ocupação e posse do território, mas da implantação dos grandes consórcios económicos em locais estratégicos à volta do mundo. Neste sentido assistimos ao emergir de uma nova perplexidade: um império que não tem fronteiras e que se identifica em última instância com o globo. Este império tem dentro de si o fim do estado. É certamente também por este motivo que numa altura em que a Europa se volta para o multilateralismo nas relações entre estados como alicerce de um mundo futuro, o Império do Atlântico assume posturas unilaterais. De facto, não estamos longe do tempo em que o centro e a periferia coincidirão por força da hegemonia americana. E isto é a negação do universalismo. Mas o que preocupa mais é a perda do compromisso com a Razão. Não existe maior potência científico-tecnológica. Todos os cérebros do mundo convergem para as universidades norte-americanas. Nenhum ensino é tão dirigido em função do paradigma empírico-crítico como o norte-americano. Nenhuma outra nação investiu tanto em investigação científica. No entanto, os estados da chamada Bible Belt continuam a renegar as teorias evolucionistas, o governo acredita que a abstinência sexual é o mais eficaz dos métodos anti-conceptivos, os laboratórios são dominados pelas multi-nacionais e os cidadãos desconhecem em absoluto a diversidade e a especificidade do mundo que [ainda] há fora da América. Trata-se de um povo infantilizado por uma moral maniqueísta que necessita do esquema herói-vilão para tornar o mundo inteligível. Vivem a ética das crianças: só é bom o que é bom para mim, já! O mundo está a mudar. O ocidente já não é mais o mesmo ocidente. Dentro de si está a nascer a sua própria negação. Uma nova matriz civilizacional vai tomando o lugar. Podemos considerá-la uma degeneração, uma espécie de ampliação dos nossos próprios defeitos, o que é irrelevante porque muito de cada um de nós é já americano. |
Publicado por Pedro Santos Cardoso às 19:24
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