Miguel Sousa Tavares
A propósito ainda da sentença do Tribunal de Ponta Delgada que condenou a rede pedófila, na qual o tribunal se recusou a aplicar o artigo 175º do Código Penal por violação do princípio da igualdade (v. o meu artigo "Inconstitucionalidade"), Miguel Sousa Tavares [MST] escreve na sua crónica de hoje no Público: "O que o tribunal fez foi dar preferência ao direito à orientação sexual do pedófilo sobre o da própria vítima. Aquele poderá ser o que quiser e o que a Constituição e a lei lho permitam. Mas, quando se abusa de uma criança, é aberrante que a sua orientação sexual se imponha ainda à da criança - que, em muitos casos, não está ainda sequer definida. Ou o tribunal achará que para um rapaz de 10 anos, por exemplo, é igual o trauma de ser abusado por uma mulher ou por um homem? Esta sentença revolta e indigna." Discordo plenamente. Transcrevo aqui o princípio da igualdade, talqualmente se encontra definido na nossa Constituição: (Princípio da igualdade) 1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei. 2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual. O princípio não proíbe que haja diferenciações na lei. O que é vedado pelo princípio é, sim, por um lado, o arbítrio, i. é, diferenciações de tratamento sem um fundamento material razoável segundo critérios de valor objectivo. Por outro lado, proíbe ainda a discriminação - parafraseando, proíbe distinções de tratamento apoiadas em categorias meramente subjectivas, tais como as que são indicadas, não exaustivamente, no n.º 2 do artigo 13º da Constituição (onde se inclui a orientação sexual). Por aqui já se compreende não haver fundamento material razoável para a distinção estabelecida nos artigos 174º e 175º do Código Penal. As condições de punibilidade da conduta do homossexual são desproporcionadamente mais gravosas em relação à do heterossexual, i. é, a fronteira da punição ou não punição, em certas condições referidas no meu artigo supra referido "Inconstitucionalidade", é traçada consoante a orientação sexual do abusador. O tal fundamento material razoável, para Miguel Sousa Tavares é o de que uma criança sofrerá maiores traumas se for abusada por uma pessoa do mesmo sexo. Mas como é que MST sabe? E se é assim em muitos casos, não haverá casos em que se verifique a situação contrária? E, nestes últimos casos em que a criança sofre menos traumas com uma relação homossexual, já será de recusar a aplicação da norma? De um outro ângulo, o que está aqui em jogo é a punição pelo direito penal de uma conduta atentatória do bem jurídico "autodeterminação sexual", não a avaliação do quantum de trauma sofrido pela criança, consoante tenha sido violada por um homem ou por uma mulher - quantum, esse, indeterminável. Subjaz aqui, parece, ao pensamento de MST, uma certa concepção moral cada vez mais ultrapassada, eivada em axiomas tais como "seria um trauma para a criança ser adoptada por um casal homossexual". Ora, fundamento material razoável aqui não há. Por outra via, o princípio da igualdade proíbe distinções de tratamento fundadas em categorias meramente subjectivas, de que é exemplo a orientação sexual. Ostensivamente é o que faz o artigo 175º do Código Penal. Por último, será de referir que o Acórdão de 9 de Janeiro de 2003 do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (caso n.º 45330/99) considerou que um preceito, entretanto revogado, do Código Penal austríaco, semelhante ao actual artigo 175º do Código Penal português, atentava contra direitos consagrados na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, bem como já deram entrada na Assembleia da República propostas de lei no sentido da revogação do preceito. Em suma, reafirmo o meu aplauso à recusa de aplicação deste artigo por parte do tribunal de Ponta Delgada. E a minha veemente discordância com MST, que de quando em vez tira estes coelhos da cartola. |