Nestes episódios de Grandes Dramas Judiciários: Urbino de Freitas, de Sousa Costa, alguns lugares do Porto de fim-de-século são referidos. Proponho uma vista de olhos ao Hotel de Paris, onde faleceu José António Sampaio Júnior (episódio anterior) e também à casa onde residia Urbino de Freitas, com mulher e filhos na rua Mártires da Liberdade, 160 (em baixo).
2. A família do negociante envenenada pelos doces da caixa No Março de 1890, na casa Sampaio, à rua das Flores, vivem, em plena concordância, José Sampaio, sua mulher, Dona Maria Carolina, sua irmã. Dona Ana Cândida, e os seus netos, Mário Guilherme, Maria Augusta e Berta Fernanda, com duas criadas, a criada de  côr, Maria Luísa e a criada de cozinha, Emília Rosa. Isto afora os criados e caixeiros adstritos aos negócios do linho. Dona Maria das Dores, mulher de Urbino, essa reside, com marido e filhos, na rua Mártires da Liberdade, 160, antiga rua da Sovela. Ora, no Sábado, 29, dêste mês de Março de 90, prestes a desfilarem as palmas e a ressoarem os hosanas do Domingo de Ramos, o carteiro da área entrega na rua das Flores um aviso de encomenda postal, endereçada a Berta Sampaio. - Uma encomenda postal para a Berta?! – anotam intrigados, os avôs da pequena. - E vem de Lisboa! – sublinha Dona Maria Carolina, a encomenda já em casa, no afã de decifrar o enigma pelo enderêço apôsto sôbre o envólucro, donde consta o nome e a morada do destinatário, o nome do remetente e a proveniência do volume. - Deixe ver, mamã! – suplica a destinatária, afogueada de curiosidade. - Espera! – ordena a avó, cautelosa, os três netos em ânsias insofridas. – Do Lúcio Artins, remetente? Não sei quem seja... – observa, o enigma a entenebrecer-se, não a aclarar-se... - E o que virá na caixa? – inquirem os interessados. - Amêndoas. É o que aqui está escrito. Amêndoas! Um presente de amêndoas, brinde da época, a Semana Santa, o domingo de Páscoa, época das amêndoas, nas vésperas das suas comemorações e dos seus festejos. A Berta, o Mário, a Maria Augusta instam a avó para que lhes desvende o mistério – a criada de côr, ao lado, na homologação das instâncias dos gulosos, por obra da dentadura alva e do sorriso ingénuo, mais gulosamente infantis. Dona Maria Carolina indefere às instâncias impertinentes. Tem de ir a casa da filha, Maria das Dores. Não pode estar com mais demoras. E à saída, recomenda á criada, em têrmos severos, «que não mexam na encomenda». – (Declarações prestadas por Dona Maria Carolina no processo-crime contra Urbino de Freitas). No regresso «verifica que efectivamente ninguém lhe tinha tocado». No dia seguinte, porém, domingo de Ramos, 30 de Março, amolece na resistencia. Concede a decifração do enigma... mas só em parte, a novas instâncias dos pequenos. Rasga o envólucro de papel. Abre a caixa cartonada, liberta da envoltura – os pequenos junto da avó, de olhos em lume. No interior da caixa grande deparam-se-lhe três caixas menores, também cartonadas, contendo amêndoas brancas e de côr, e ao centro, em cada uma delas, um bôlo de côco recheado de chocolate – como se destinasse um para cada um dos três gulosos. - Amêndoas! Doce de côco e chocolate! Mamã! Deixe-nos provar! – clamam todos, em côro, a Maria Luísa dos Anjos a escamotear o fio de baba que lhe escorre dentre a neve dos dentes risonhos. A cautelosa senhora não consente na prova. Considera-a arriscada. Sabe lá quem é o remetente, êsse Dom Lúcio Artins! E a intenção do misterioso brinde! Não. Se o presente fôsse do tio, Carlos de Almeida, empregado em Lisboa, ou de Miss Lothie, que tornara para Lisboa, após a morte do José, êsses não ocultariam seus verdadeiros nomes. É arriscado comer guloseimas ignorando-se-lhe a origem exacta. Urbino de Freitas aparece tarde. Propõe que se celebre o domingo de Ramos, êle e a família, incluindo os menores no espectáculo de cavalinhos. Os pequenos tornam às instâncias anteriores, no retôrno a casa. A avó transige só quanto às amêndoas, distribuindo algumas pelos três. Não há razão para suspeitas maléficas, observa, no dia imediato, certificando-se que nada correu de anormal por obra das amêndoas misteriosas. Naquela certeza, depois do jantar, distribuiu um dos três bolos por cada um dos três netos – êles a acarinharem «a mamã», ela a aceitar «um bocado de cada um dos bolos das crianças, meigamente rogada por elas». Na distribuição contemplam, solicitamente, a Maria Luísa, cujos olhos negros ameaçavam afogar-se no mar alto da cobiça, se lhes não acodem com tábua de salvação. - É amargo – diz nauseada, Maria Augusta, logo confirmada pela Berta Fernanda, que dá ao Mário o que lhe resta do seu manjar. Dona Maria Carolina também «lhes acha um gôsto péssimo». Daí a pouco tempo a avó, no seu quarto, vê entrar a Maria Augusta, que vem notificá-la de que a Berta está muito agoniada. - E tu estás verde, minha filha! – clama, em tom de alarme. Chama as criadas. Pede-lhes o frasco de sais de fruta, água morna e açúcar. «Dá de beber às meninas». A cozinheira faz beber uma poção de azeite à menina Maria Augusta. O Mário surge neste lance. Queixa-se de «que está muito agoniado». À semelhança da irmã e da prima toma sais de fruta, em á gua tépida. E pelo sim, pelo não, a avó manda chamar à pressa o «boticário, O Gomes, com farmácia ali perto». [Episódios anteriores: |