14. A Urbino tudo corre mal - E o bilhete de visita escrito por Eduardo Mota? Não o conservará ainda em seu poder? – inquire Pestana da Silva, no alvorôço do mandante que, em busca das minas de Salomão, se tivesse trasviado no caminho, e que, de repente, em brusco e imprevisto desvio, se lhe deparasse a rota certa.
Brito e Cunha procura o bilhete na carteira. Encontra-o entre outros papéis. Entrega-o ao Delegado do Ministério Público – que o rubrica, rubricando-o também as entidades presentes.
Pestana da Silva regressa ao Pôrto, exultante. Considera-se na posse da chave mestra da tragédia.
Volta aos Arcos na madrugada de 29, desta vez com o Comissário, Cardoso Lopes e Urbino de Freitas, êste ao cuidado de dois guardas à paisana – na comitiva o Jornalista Lopes Teixeira, que lograra violar o segrêdo da Justiça e que assim ia testemunhar a diligência.
Nos Arcos, vão direitos à Administração do Concelho. Da Administração do Concelho dirigem-se a casa de Brito e Cunha, o arguido levado no meio de pessoas desconhecidas.
- Conhece, entre os indivíduos presentes, o que foi seu companheiro de combóio em 27 de Março? –pregunta-lhe o Comissário.
- Conheço. É aquêle – e aponta Urbino.parecera-lhe calvo na carruagem. Ao vê-lo agora, sem chapéu, verifica que o engano proviera do facto da testa alta, com fundas entradas.
- Então o senhor... reconhece-me, decorrido tanto tempo?! – interpela o incriminado.

- Reconheço. É o senhor mesmo.
- Tem filhos? – replica, altivo, intimorato.
- Precisamente porque os tenho... é que afirmo isto, com a consciência de quem cumpre um dever. Foi o senhor que me entregou a encomenda. Foi o senhor que pediu o seu despacho para o Pôrto e que escreveu o nome Eduardo Mota no meu próprio bilhete de visita.
A mulher de Brito e Cunha, chamada a preguntas, reconhece em Urbino de Freitas, igualmente, o Eduardo Mota da viagem para Lisboa – Urbino de Freitas protestando sempre, com energia e decisão, contra as declarações dos Britos e Cunhas.
Na mesma emergência, tornado público o reconhecimento dos Arcos, o Delegado recebe a caderneta da Escola Médica, enviada por mão anónima, em que Urbino, a lápis azul, apontava faltas e notas dos seus alunos – as últimas notas apontadas a 14 de Abril, véspera do dia em que foi prêso. Após isto, em busca feita a diversas farmácias, encontraram-se receitas do Clínico, escritas a lápis azul.
O empregado dos correios de Lisboa, que fêz o despacho da encomenda, Acácio Morais Costa, vai aos Arcos, a ver se reconhece Brito e Cunha. Antes da entrada solene no quarto do doente, diz ao Administrador do Concelho que, nunca esquecera, pela impressão que lhe fêz a sua quota-parte no envenenamento, que o expedidor da encomenda lhe deu, para se pagar do porte, uma moeda de 500 réis. Entra no quarto. Brito e Cunha está com outras pessoas. Aponta-o, embora sem a certeza de que seja o mesmo. Brito e Cunha é que o reconhece. Reconstitui, na sua presença, a sala do Correio em que fêz a expedição. Lembra-lhe que, para pagamento do porte, lhe deu uma moeda de 500 réis – particularidades de retentiva que seriam inverosímeis, inacreditáveis mesmo, desvinculadas de acontecimento durante anos e a cada passo rememorado.
No Comissariado, os peritos Megre Restier, Manuel Vieira da Silva e Sá e António dos Reis Castro e Portugal procedem ao exame do bilhete de visita, posta em confronto a sua letra com a das cartas de Urbino a Adolfo Coelho. E declararam achar perfeita identidade entre uma e outra letras.
A campanha dos convictos da culpabilidade de Urbino recrudesce, animada ao sôpro ponteiro dos últimos acontecimentos. Os jornais desta facção, a maioria dos jornais do País, afirmam aos quatro ventos que tôdas as dúvidas se dissiparam na consciência dos homens de boa-fé – embora os paladinos de Urbino, continuem a lançar mil calúnias e insinuações tendenciosas sôbre os Magistrados da Polícia e dos Tribunais ligados à instrução e organização do processo e seus muitos incidentes; a despejarem mil e uma afrontosas aobjurgatórias sôbre os peritos do Tribunal, Agostinho Souto, Ferreira da Silva e demais, reduzidos a infímos bonifrates servis, manobrados ao sabor dos cordelinhos da acusação; a transfigurarem a avó de Mário, ela que é igualmente avó dos filhos do incriminado, em ferina megera, apunhalando no coração, por velhos despeitos familiares, os filhos da própria filha; embora os parciais do arguido proclamem que Brito e Cunha não passa de reles farsante, alugado pelos empresários da farsa tenebrosa, no momento em que a viam na iminência de banquear no abismo da torpeza que a engendrou, a vítima da torpe cabala, prestes a libertar-se das suas garras e a ressurgir imaculada de culpas.
E as contradições de Urbino no caso da ida a Lisboa em 27 de Março? – interpelam os contrários. Declarou que perdeu o combóio em Coibra, tendo-se provado a falsidade de tal declaração.
Declarou às pessoas com quem esteve em Coimbra que saira do Pôrto em visita a uma doente da Pampilhosa, tendo afirmado, nos autos do processo, que viajava nesse combóio com destino a Lisboa – o que prova também pelo bilhete comprado em Campanhã. Ao passo que, argumentam os dêste partido, as declarações de Brito e Cunha acertam em absoluto com as próprias declarações do incriminado.
Já se sabe o nome e a qualidade da pessoa que fêz a denúncia anónima da interferência de Brito e Cunha na tragédia e da sua chegada a Portugal. Chama-se Bento Agostinho da Costa Guimarães. É ourives na rua das Flores. Brito e Cunha teve notícia do envenenamento, no Brasil, pelos jornais. Pelos pormenores da remessa das amêndoas, certificou-se de que fôra cúmplice involuntário de Urbino de Freitas. Do Rio escrevera uma carta a Manuel Tinoco, seu cunhado, comunicando a participação involuntária no crime. Proibira-o, porém, de falar no assunto, a fim de lhe evitar a obrigação e os incómodos da vinda a Portugal para esclarecer a Justiça. E Costa Guimarães, ciente, pelo Tinoco, da chegada do Cunha a Lisboa, decidira comunicá-la ao Ministério Público.
O Ministério Público adiciona estas novas testemunhas ao rol apontado no libelo acusatório.
Realizam-se mais exames a autógrafos. Surgem mais incidentes dilatórios – o julgamento designado para 20 de Novembro. O Ministério Público requerera que o Réu fôsse julgado por Júri misto, sorteado pelas pautas do Pôrto, Paredes e Vila-do-Conde. E a defesa, embora se não oponha ao Júri misto, pretende que, à pauta da Comarca de Paredes, se prefira a da Feira, mais próxima.
Está à morte, a 13 de Novembro, uma filha de Urbino, de quinze anos. A mãe da moribunda, que não fraqueja na heróica assistência ao encarcerado, acompanhada pelos outros quatro filhos e pelos advogados do pleito, apresenta-se no Tribunal e suplica ao Juiz a ida do marido a casa, a fim de se despedir da filha. O Juiz indefere – rígido no apêgo à Portaria do Ministério da Justiça, de 21 de Janeiro de 1843, que não concede aos foreiros do Código Penal o piedoso e humano desfôgo.
A filha morre a 16 – a cidade agitada, ao falso alarme de que se encontra apenas em crise letárgica, provocada pelo pai, no fito de adiar o julgamento, os médicos Franchini e Gramaxo verificando que ela de facto morrera.
No mesmo dia 16 – não há fulminação que não caia, nos últimos tempos, sôbre a cabeça do arguido! – Alexandre Braga, ao coordenar com Temudo rangel a defesa do constituinte, dorido talvez por tão desastrosamente ter protelado o julgamento, sofre o insulto duma congestão pulmonar. Recolhe a casa, febril, numa «cadeirinha» - o constituinte privado do poder dominador, tantas vezes milagroso, da eloquência empolgante do insigne patrono.
[Episódios anteriores]
1. A rua das Flores e a casa do negociante Sampaio. Os netos de Sampaio. 2. A família do negociante envenenada pelos doces da caixa. 3. Intervenção de urbino de freitas, genro e tio dos envenenados. Os clisteres de cidreira. 4. Morte de Mário, um dos netos de Sampaio. Ressurge o caso recente da morte de Sampaio Júnior, filho do mercador. 5. Interrogatórios de Urbino. 6. Declarações de Adolfo Coelho. 7. Prisão de Urbino, professor da Escola Médico-Cirúrgica 8. As investigações prosseguem. 9. A imprensa e o Ministério Público. 10. Os especialistas e a polémica. 11. A estratégia da defesa. 12. A conferência de peritos e os recursos apresentados por Alexandre Braga. 13. Uma testemunha inesperada